Josephine Wall
Escrito em 1991 , por Caio Fernando Abreu , este conto ,
pretendia ser uma reescritura de
" A pequena sereia " de Andersen .
A jovem de " Onírico " encontra com seu amado em sonho ,
e passa , evidentemente sem sucesso , a procurá-lo nas ruas .
Partilho com vocês alguns trechos .
" Viu os frutos do pomar amadurecerem e serem
colhidos , viu a neve derreter-se nas montanhas .
Mas nunca mais viu o príncipe ."
Andersen , " A pequena sereia "
" Veio num sonho , certa noite .
Ela o amava . Ele a amava também .
E ainda que essa coisa , o amor , fosse
complicada demais para compreender e detalhar
nas maneiras tortuosas como acontece ,
naquele momento em que acontecia dentro do sonho ,
era simples . Boa , fácil , assim era.
Ela gostava de estar com ele ,
ele gostava de estar com ela . Isso era tudo .
Dormiam juntos , no sonho , porque era bom
para um e para o outro estarem assim juntos ,
naquele outro espaço .
(...)
Deitada no ombro dele , ela via seu rosto
muito próximo . Esse era o sonho , nada mais .
E isso , mais tarde saberia , era o único fato
do sonho inteiro : via o rosto dele muito próximo .
(...)
Talvez ele tivesse passado um dos braços em
torno da cintura dela , quem sabe ela houvesse
deitado uma das mãos sobre o ombro dele ,
erguendo os dedos até que tocassem no
lóbulo de sua orelha .
Em todos os dias que se seguiram à noite daquele
sonho , e foram muitos , honestamente não
saberia localizar outros detalhes .
(...)
Sem artifícios , acordou na manhã seguinte .
Vazias , ela e a manhã . E procurou o telefone
para contar às amigas . " Premonição " ,
disse uma , " você vai encontrar alguém ";
" transporte astral " , disse outra ,
"você deve tê-lo realmente encontrado numa
outra dimensão "; " ah , mera projeção de carências
atávicas " , disse mais uma , " no fundo pura
falta de sexo " .
(...)
Nos dias seguintes , mesmo aceitando todos
os jantares e cedendo a todos os cinemas
e shoppings e pizzarias , pois ele poderia estar
também no real - ele também não estava lá .
Nem aqui . Em nenhum lugar que fosse ,
de fora ou de dentro , nos dias seguintes ao dia
em que estivera deitada no ombro dele tão
proximamente nu também , no fundo de um
sonho , conseguia reencontrá-lo .
( ...)
Passaram-se meses , ela não o esquecia .
Toda noite , acompanhada ou não -
pois ao fim e ao cabo achava , digamos ,
saudável manter uma vida real-objetiva
enquanto ele continuava a acontecer dentro
de si , noutro espaço .
( ...)
Então voltava a deitar em horas absurdas
e a dormir para tentar encontrá-lo no país
onde habitava , e nem sabia que reino mais ,
tão diverso do dela .
Todas as noites , um segundo antes de afundar ,
pensava - onde quer que você esteja , meu príncipe ,
em qualquer região da minha mente , no mínimo
interstício , na fímbria do pensamento , frincha da
memória , dobra da fantasia , faixa vibratória
passada presente futura , aqui vou eu ao seu encontro,
meu bem amado . E nada . Mesmo que alimentasse
o hábito de materializar anjos e fadas sentados
à beira de sua cama , a perguntarem gentis
o que desejava mais profunda e loucamente entre
todas as coisas da vida inteira , o que mais queria
de tudo que existe no universo infinito -,
nunca mais voltou a vê-lo .
Nem no sonho . Nem na vida .
(...)
Talvez se morresse .
O problema é que a vida era agora e aqui .
E além de não estar nem no aqui
nem no agora , ele não partia .
Não se matou . Não seria capaz , resistia
sempre a ilusão de encontrá-lo um dia .
Por isso houve outros , claro .
Algumas iluminações , encontros quase agradáveis .
Mas aprendeu a ir dormir sempre o mais cedo
que pode , pois é nessa faixa que ele habita , ela sabe
a contemplá-la mesmo de olhos fechados .
E de tudo que foi restando nestes anos todos ,
continua sabendo que sabe que fica lá o lugar
onde poderia encontrá-lo outra vez .
( ...)
Arfam levemente os dois .
Ela dorme segura protegida no ombro dele
que a protege seguro . Mesmo dormindo ,
mesmo do lado de cá . E isso é para sempre ,
por mais que o tempo passe e a afaste cada vez
mais dele , que continua eterno naquele segundo
que o viu .
E isso ninguém roubará , repete-se ,
mesmo levando em conta todos aqueles meses
de enganos vis que continuam e continuarão a vir
depois daquele sonho .
Eu te amo , repete sozinha para o escuro
da noite , pouco antes de seu corpo dissolver-se
na espuma do sono , eu te amo .
E se pudessem saber , os outros ,
todos saberiam que isso não deixa de ser
uma vitória . Certa espécie de vitória .
Mas tão dúbia que parece também
uma completa derrota ."
Caio Fernando Abreu
in , " O essencial da década de 1990 "
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